quarta-feira, 2 de março de 2011

HAICAI CONTÁBIL

Marcelo Henrique da Silva

Março/2011

Foi através do amigo Rubem Alves que conheci os haicais, e sua essência (fazem parte de um ritual de morte: o seppuku).

Segundo consta, o seppuku é um suicídio ritual ligado à tradição dos guerreiros samurais. O guerreiro se veste com vestes sagradas, assenta-se com pernas cruzadas e, com um punhal, abre vagarosamente o seu ventre de lado a lado. Nesse momento, ele se curva para a frente e o seu melhor amigo põe fim à dor com um golpe de espada que separa cabeça do corpo.

Parte desse ritual de por fim à vida era o guerreiro escrever um haicai, o seu último haicai.

Um haicai é um minúsculo poema que pinta a epifania de um instante. Miniatura; mas de peso insuportável.

Na essência do haicai temos, em poucas sílabas, a profunda meditação de uma vida; palavras essenciais que ficam.

Pensei, então, num haicai contábil; minha morte se aproxima...

Minha morte foi anunciada quando doutores das leis contábeis profetizaram que "se algum contador não souber falar e escrever pelo menos durante duas horas e umas 20 páginas sobre a 'essência sobre a forma' e o 'valor justo' será sumariamente expurgado da consideração dos pares 'mas adiantados', quando não punido com execução de apedrejamento moral, até a morte (contábil)".

A morte nos acompanha...

Um haicai contábil; palavras essenciais que ficam.

É uma ilusão crer que um haicai contábil é composto apenas do contexto contábil; essas referências constituem uma limitação e um mal-entendido. Foi o Juliano Garcia Pessanha que sublinhou isso, quando afirmou que um livro é feito de encontro com lugares, doenças, pessoas atravessadas por uma verdade, pessoas que são livros não escritos... No caso da minha bibliografia, ela contempla não só os livros efetivamente citados nos capítulos e consultados na elaboração deles, mas também aqueles que me tocaram ao longo da vida e que ajudaram a formular as questões mais importantes.

Esse meu haicai, na verdade, não foi pensado estruturalmente; ele apareceu. Eu não estava pensando nela, na idéia; elas vieram por conta própria. Não eram idéias novas, mas me tocaram e ajudaram a formular o meu haicai.

O filósofo Nietzsche percebendo isso esclareceu que a gente não busca, ouve. Não pede ou dá, aceita. Tudo se oferece como se fosse a expressão mais óbvia, mais simples.

Foi o que aconteceu comigo. Numa onda enorme de liberdade, enquanto lia o poeta Manoel de Barros no seu discurso sobre Desprezo (o lugarejo chama-se Desprezo), a formulação do haicai apareceu por conta própria, e foi assim emendado por mim: "Eu não sei nada sobre as grandes coisas do novo padrão contábil, mas sobre as pequenas eu sei menos".

Não consigo escrever nada segundo as regras. Minha execução será por apedrejamento; enfim!

Minha morte se aproxima. Morte livre. Que vem porque eu quero.

Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.


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