sexta-feira, 1 de abril de 2011

DESIMPORTÂNCIA CONTÁBIL: UMA VERDADE INCONVENIENTE

*Marcelo Henrique da Silva – Abril/2011



Ao descrever sobre o pensamento “livre” o filósofo Bertrand Russel assinala que
este é realmente livre quando exposto a uma competição liberada entre opiniões,
ou seja, quando todas as opiniões possam se manifestar, e não haja vantagens
associadas a esta ou aquela. Por outro lado o pensamento é “não livre” se todos
os argumentos de um lado da controvérsia são sempre apresentados de modo tão
atrativo quanto possível, enquanto que os argumentos de outro lado só podem ser
descobertos mediante uma procura diligente.



O ideal do pensamento livre, ao que se vê no universo contábil brasileiro...



Há pouco tempo tivemos a introdução no direito positivo brasileiro da Lei
11.638, que, pela propaganda oficial – incorporada e batalhada pela tropa de
guarda – teria estabelecido que todas as empresas brasileiras estariam obrigadas
(sic) a adotar um novo padrão contábil; internacional, diga-se.



Ao reivindicar o monopólio da opinião, as entidades de contabilidade tornaram-se
um dos principais obstáculos à inteligência e à liberdade de pensamento, e isso
de deve basicamente a alguns fatores: a) de que um “novo” contador precisa de
uma “nova” contabilidade para crescer; b) propaganda oficial do pensamento
único; c) patrocínio maciço a um sistema de cursos e eventos de opinião única;
d) patrocínio extensivo a um sistema de educação destinado a fazer acreditar que
não há espaço para proposições diferentes; e) desestímulo ao pensamento
sistêmico e interdisciplinar (desde que oposto ao oficial); f) falta da
proposição de debates estruturais sobre as opiniões divergentes.



Numa realidade paradoxal, diante daquilo que se verifica no universo contábil
pátrio, vemos o filósofo Paolo Flores d’Arcais e o então cardeal Joseph
Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, debaterem sobre a existência ou não de Deus
(Deus existe?); noutra frente, o filósofo Mario Sergio Cortella e o psicólogo
Yves de La Taille Deta, debaterem sobre moral e ética (Nos labirintos da moral);
mas no meio contábil as entidades (de classe, sindicatos, universidades, ...)
não produziram qualquer debate sério de idéias entre opiniões diversas das suas
– a oficial.



Debate-se sobre Deus; debate-se sobre moral, sobre ética; debate-se... Mas não
existe espaço para a proposição de debates sobre opiniões diversas no universo
contábil. Proposital! Pensamento único!



Só os guardiões, na linguagem de Platão, podem pensar e opinar; o resto deve
obedecer, seguindo líderes como um rebanho de carneiros.



Mas pra que debater se as entidades já estão convictas de suas “opiniões”? Na
psicologia do consensus sapientium contábeis a “opinião” é única.



A opinião é oficial, e única.



Mas, então, o que se deve fazer com os casos em que as normas jurídicas resultem
em prescrições contrárias às “opiniões oficiais”?



Nesse caso utilizam-se da teoria aplicada pelos teólogos do Concílio de Trento,
de 1546, que, sem meias-palavras, decidiram: “ninguém que confie em seu próprio
julgamento e que distorça as Escrituras Sagradas de acordo com sua própria
concepção ousará interpretá-las contrariamente àquele sentido que a Santa Madre
Igreja, a quem cabe julgar seu verdadeiro sentido e significado, sustentou ou
sustenta”.



Assim, a opinião diferente da oficial deve ser considerada formalmente como
opinião de um herege, já que contradiz explicitamente o sentido da “sagrada
opinião”; fruto supremo da árvore do conhecimento.



Talvez seja o caso de concluir que estava certo o russo Liev Tolstói quando
escreveu sobre como se mantém o poder do Estado: “Graças a uma organização das
mais artificiais, inteiramente forjada em favor do aperfeiçoamento científico, e
que faz com que os homens estejam sob um encanto do qual não podem se libertar”.
Esse encantamento, segundo Tolstói, consiste em alguns meios de influência,
dentre os quais destaca-se a “hipinotização do povo” e a “intimidação”.



Em outras palavras, o que pode estar no cerne da objeção ao debate nos temas
contábeis não é tanto a possibilidade do ser cognoscente construir
interpretações diferentes daquelas oficiais, mas, antes, o desafio à autoridade
dos eruditos na interpretação das “escrituras”.



Vale lembrar que Galileu Galilei foi levado a julgamento em 1633 e considerado
veementemente suspeito de heresia; os juízes o acusaram “de ter acreditado e
apoiado um doutrina que é falsa e contrária às sagradas e divinas Escrituras –
de que o Sol é o centro do mundo e não se move de leste a oeste e de que a Terra
se move e não é o centro do mundo”.



Eppur si muove.



Seguindo os passos gigantes de René Descartes, espero o julgamento não apenas
pelas coisas que expliquei, mas também, e principalmente, por “aquelas que omiti
intencionalmente para deixar a outros o prazer da descoberta”.



E, contudo, se move.



Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.