Antônio Lopes de Sá
A discussão encetada sobre a legitimidade do denominado “Valor Justo” a ser atribuído a componentes patrimoniais, segundo ditam normas contábeis, se prende exatamente a questões conceituais frente à realidade; ou seja, liga-se a um embate entre o nocivo “canibalismo especulativo” e o sadio “objetivismo científico”; à especulação tem faltado escrúpulo e respeito à ética, gerando crises financeiras sucessivas, auxiliada pela ocultação de dados e falsidade informativa.
O normatizado, tal como se apresenta não se afina com a essência do que racionalmente se deva ter como uma “justiça de valor” patrimonial.
Como se infere em razão do entender de Einstein o “saber livremente pensar” nem sempre foi tônica evocativa em matéria conceptual normativa; como esta se guia muitas vezes mais por interesses particulares que por preocupação cultural merece o tema considerações reflexivas.
Partindo do entendimento de “conceito” como atribuição de qualidade a alguma coisa, ou seja, como deve ser entendida a essência do formalmente expresso por palavras, é possível encontrar explicações válidas buscando apoio em inteligências privilegiadas que construíram a civilização.
Contabilmente “valor” é uma concepção tradicional atada à “quantificação” dos fatos dimanados da movimentação patrimonial dos empreendimentos humanos, ou seja, uma “mensuração” de ocorrências, registráveis e demonstráveis.
A “conta” nasceu no paleolítico superior e o aspecto “quantitativo do patrimônio” surgiu na antiguidade, nesta já como demonstração de valor, começando a ser traduzida em expressões numéricas desde os mais remotos tempos; essa a razão pela qual os contadores na Suméria, há cerca de 6.000 anos, inventaram os “números abstratos” e os conceitos de “débito” e “crédito” nos registros; foram esses profissionais os pais das Matemáticas e da escrita; tão relevante tornou-se o informe “quantificado” que este se fez predominante, a ponto de pelos séculos afora associar o ensino da Contabilidade ao dos cálculos.
A escola filosófica matemática da Grécia antiga (seguindo ao que se atribui seja de proveniência do oriente médio), estribou-se no raciocínio “dedutivo”, ou seja, no princípio já de há muito consolidado de que “as coisas se provam através de outras”.
A isso socorreu o pensamento do pai da geometria plana, Euclides, afirmando que a dedução deve partir de princípios “gerais por si mesmos”, ou seja, de parâmetro confiável.
Tal orientação nas avaliações, sob a metodologia dedutiva fiel a parâmetros fiáveis, vigorada pelo platonismo e preceitos euclidianos, prevaleceu no ensino de cálculos na Idade Média nas “Escolas de Ábaco onde também se ensinava Contabilidade, acabando por fortemente influir sobre esta (Paciolo, o primeiro difusor das Partidas Dobradas em livro impresso pelo processo de Gutenberg, estudou na escola de Ábaco de Bragantino, em Veneza).
O processo básico das “partidas dobradas”, portanto, fundamentado na equação expositiva dos fenômenos patrimoniais em causa (crédito) e efeito (débito), desenvolveu-se sob a lógica do método dedutivo.
A indução que posteriormente no século XVII Francis Bacon apresentou como oposição ao método dedutivo não vingou no campo das quantificações, sequer obtendo total sucesso no campo científico; inclusive as obras contábeis editadas na mesma época do pensador referido (esse avesso às matemáticas) não aderiram ao critério indutivo e muito menos as posteriores, ressalvas feitas a algumas poucas, e, nestas apenas em raros aspectos particulares, como a de Lopes Amorim, no século XX.
Mesmo a tradicional filosofia do “subjetivismo” dos gregos Protágoras e Górgias (não muito diferente da que o cético Hume adotaria cerca de 2.000 anos mais tarde) que tanto serviu de vau aos pragmáticos, obteve sucesso nas áreas contábeis, considerada a responsabilidade que estas sempre representaram face aos interesses de terceiros.
No embate entre a prevalência da “razão” sobre a simples “percepção” aquela a esta não cedeu espaços no campo quantitativo; na atualidade, entretanto, a aludida dissensão filosófica está lamentavelmente a atormentar a prática da “mensuração” com a passagem aberta ao ”subjetivismo” abonada pela adoção do denominado “Justo Valor”.
Embora cientificamente a expressão quantitativa dos fenômenos patrimoniais exija “realidade objetiva”, as normas ensejam a “falsidade subjetiva”.
Relativamente, também, quanto ao conceito de “justo” vale ponderar que é ainda a filosofia grega antiga que vem em apoio ao “racional” e é ela que nos mostra a responsabilidade que existe em acolher tal conceito.
Assim, mesmo não afeito ao raciocínio matemático, foi Aristóteles quem evocou a “proporcionalidade” para o que se deva atribuir como “justiça”.
Dessa forma, a tese da até “divina proporção” (a que defendeu Platão e que Luca Pacioli ensinou a Leonardo da Vinci), foi abraçada pela filosofia clássica para consagrar que “em relações desiguais a identidade só se estabelece com ponderações”, ou seja, respeitando uma hierarquia qualitativa.
Isso porque proporção é uma relação entre razões, estas que de per si sendo diferentes guardam, todavia, identidade em condições de relatividade.
Fácil, pois, é concluir que um conceito de “Valor Justo” deve estar aferrado a uma realidade “objetiva” e “proporcional”, oposta ao incerto e fortuito.
Isso impõe a exclusão total do “subjetivismo”, assim como do “casuísmo”, ambos demolidores da solidez que oferece a “proporcionalidade”.
Perante a lógica e em face da realidade não se aplicam as atribuições de um conceito científico contrariando as razões que o sustentam, a menos que se deseje subverter a realidade.
Assim entende em nossos dias um dos mais famosos filósofos contemporâneos, J.F. Lyotard, em sua expressiva obra sobre a “Pós Modernidade” na qual atribui a decadência conceptual à debilidade educacional de natureza científica e filosófica; à mesma conclusão chegou o Congresso Internacional de Educação realizado em Belo Horizonte não faz muito tempo, recomendando reformas no ensino.
A inferioridade intelectual em definir, a ignorância sobre os recursos imensos da cultura por efeito de deficiências de formação educacional, a carência no campo da razão e da reflexão, a pobreza de conhecimento de Lógica, são algumas das causas de muitos defeitos de natureza conceptual e de compreensão frente à realidade das coisas; soma-se ainda a isso a distorção da verdade e o poder de um “capitalismo canibal” que representa a decadência ética atingindo a realidade informativa em Contabilidade, deformando através de portas abertas pelas normas e pelo discutível “Valor Justo” quando aplicado nas maquinações dos balanços (casos das empresas ENRON, PARMALAT, XEROX, QWEST, MADOFF etc. denunciados pela imprensa e pelo Parlamento dos Estados Unidos de há muito).
Conceitos nebulosos e vazios contidos em regras e “notas explicativas”, alcançando a valorimetria, com o intuito de complicar o entendimento de terceiros, aduzem-se ainda ao processo; segundo acusam autores como Singleton, Bologna e Lindquist em obra recentemente editada (Fraud Auditing and Forensic Accounting, 3ª. edição Wiley, USA, 2006) nem os recursos da eletrônica conseguiram deter totalmente as fraudes, como muito cedo o escândalo do “Equity Funding” desde a década de 60 veio a comprovar e, também, outros diversos que se seguiram e ainda estão a ocorrer.
Uma “justiça de valor” é necessária; isso, todavia, não implica aceitar que o conceituado como “Valor Justo” pelas normas contábeis produzidas por grupos de entidades privadas seja algo que possa conduzir à essa “realidade objetiva”; o normalizado não está aferrado ao defendido pelos raciocínios lógicos dedutivos, nem se encontra apoiado em proporcionalidade obtida por critério responsável.
Os riscos de avaliação em base do normalizado não necessitam de argumentos outros que os evidenciem, nem dos que fartamente os fiz evidentes em dezenas de artigos (reunidos em minha página na Internet http://www.lopesdesa.com.br/), pois a realidade das crises financeiras auxiliadas pela falsidade informativa, esta apoiada por diretrizes normativas, é mais eloqüente que matérias escritas.
Sendo o denominado “Valor Justo” algo atado ao “condicional”, ao “incerto” (porque preços de mercado e realização podem ser produzidos artificialmente pelos que detêm o poder sobre a comunicação) escapa aos rigores de uma realidade objetiva e de um julgamento estribado em uma proporção racional.
Houvesse sinceridade nos informes, existisse obrigatoriedade de que assim fosse através de critérios objetivos ditados por normas competentes, com acessos fechados ao “subjetivismo” e certamente os calotes não vingariam, porque seria irracional admitir que alguém estando bem informado sobre a mentira contida nas informações contábeis e paralelas veiculadas pudesse realizar qualquer investimento.
Não são necessários muitos neurônios para inferir que uma “justiça de valor” fundamentada em uma lógica da realidade objetiva difere de uma idéia de “valor justo” inspirada em construção individual, ensejando o manipulável, como comprovadamente o mercado tem reconhecido ser, em face de calotes diversos difundidos pela imprensa internacional.
O perverso modelo da especulação financeira, emoldurado pela falta de ética, pintou um quadro que lamentavelmente exibe um cenário de ambições desmedidas, este no qual se utilizam meios honestos da informação contábil, para, ao deformá-la e submetê-la, dela se servirem para fins aéticos.
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