Marcelo Henrique da Silva
Abril/2010
Diz o filósofo Donaldo Schüler que o espanto desarticula, rompe totalidades. Toda ruptura é dolorosa. Operada a ruptura, estamos diante de realidades complexas. O discurso não nos põe no começo. Todo discurso pressupõe discursos, confronta-se com outros discursos e produz discursos novos. Um discurso que compreendesse todas as articulações seria o Logos heraclitiano – indivisível. O discurso substitui a genealogia, rearticula. Comporta-se como o véu de Penélope: faz-se e se desfaz.
A inquietação da norma jurídica disciplinadora da contabilidade das empresas brasileiras, exceto das alcançadas pela Lei 6.404, abala tronos no céu e na terra. Reivindica-se o monopólio à lei das sociedades anônimas; causa única, indivisível.
Não se admite ruptura. Não é desejável que pessoas comuns (contadores), pensem por si mesmas, porque se presume que essas pessoas são difíceis de controlar e causam dificuldades aos normativistas, sábios. Só os guardiões, na linguagem de Platão, podem pensar; o resto deve obedecer, ou seguir líderes como um rebanho de carneiros.
O espanto rompe. A primeira fissura provocada pelo espanto separa o homem dos seus contornos. Homens que não lutam pela liberdade não estão maduros para viver livremente.
O nosso “sistema” atual converte às pessoas a capacidade de ler, repetir informações; mas esse mesmo “sistema” torna-as incapazes de avaliar uma evidência ou de formar uma opinião independente. Elas são, então, acometidas, ao longo de suas vidas profissionais e acreditar apenas nas proposições oficiais. A arte da propaganda; a propaganda oficial.
Deparamo-nos com aquilo que o filósofo Bertrand Russell considera como realidade paradoxal, onde a educação (contábil?) tornou-se um dos principais obstáculos à inteligência e à liberdade de pensamento.
Há um sério defeito, mas não apenas um, no pensamento monopolista daqueles que se desdobram em garantir repercussão jurídica da lei 6.404 a todas as empresas brasileiras: o código civil.
Diante do discurso oficial, afirma-se que há lacunas neste Código, o que estaria a impor, obrigatoriamente, a lei das sociedades anônimas a todas as empresas (sic).
Mas afinal, há lacunas no código civil, no que reflete o tema contábil? ou “silêncio eloqüente”?
Vale dizer, a lacuna não se confunde com a figura que o Supremo Tribunal Federal denominou de “silêncio eloqüente”, este consistente na situação em que não há omissão nem lacuna, mas o legislador não previu a hipótese porque não quis que fosse prevista, por não ser caso a ser previsto. Isto é o que o STF tem chamado de “silêncio eloqüente”.
Nas palavras do mestre Marco Aurélio Grecco, lacuna é a falta de previsão específica, e silencio eloqüente é a previsão através de uma não-previsão. Ou seja, o silêncio eloqüente “é uma não-previsão que corresponde a uma vontade que o caso não seja alcançado”.
Daí ser relevante perguntar se há lacuna ou silêncio eloqüente no código civil, no sistema contábil das empresas reguladas por este estatuto? E ainda: há apenas um único sentido (oficial) para uma não-previsão?
Apoiado no “culto à lacuna” busca-se demonstrar que a “timidez” dos pilares contábeis do código civil seria suficiente, por si só, para impulsionar a subsunção à lei 6.404.
Esta abordagem da lacuna está freqüentemente apegada à propaganda oficial; opinião normatizada, esquadrinhada. Crenças reconfortantes... Basta seguir a opinião oficial; não se faz necessário pensar, construir pensamentos. Como em Édipo Rei, de Sófocles: “poupa-me lições e conselhos”!... Siga.
A partir de outra visão, naquilo que Moncoure Conway devotou parte de sua vida: a liberdade de pensamento e individual, o silêncio do legislador pode ter outro significado, senão apenas aquele da lacuna, refiro-me ao silêncio eloqüente, que, para alguns doutrinadores chega a configurar como um verdadeiro “princípio”.
Se as normas que regulam a contabilidade no código civil não prevêem a tipicidade fechada in casu, mas sim todos os seus pilares, não se pode aplicar por analogia e parcialmente a lei 6.404, e não se pode admitir que houve lacuna legislativa, mas silêncio eloqüente do legislador que não quis aplicar à maioria das empresas com natureza limitada o regramento contábil das sociedades anônimas. E a prova da assertiva é que o, tardio, mas válido, art. 3º da lei 11.638 determina que se aplicam às sociedades de grande porte, ali tipificadas, as disposições da lei 6.404 sobre escrituração e demonstração contábeis, ainda que estas empresas não sejam constituídas como sociedades anônimas.
Socorro-me de Pablo Neruda, em seu Livro das Perguntas, para também perguntar: “Foi onde que a mim me perderam que logrei enfim me encontrar?”. Ou, de outra forma, por que no art. 3º da lei 11.638 haveria prescrição de aplicar a lei 6.404 às grandes empresas se, pela lacuna cultuada (sic), “todas” as empresas já estariam sob o julgo desta norma? Reaplicar o aplicável!?
O silêncio eloqüente não se preenche porque “existe norma” – lei 6.404. Este silêncio do legislador tem o significado de vontade de não querer prever a hipótese. Não é meramente o não prever, é uma não-previsão que corresponde a uma vontade. No caso, as empresas subsumidas ao código civil estão subordinadas ao regramento contábil ali prescrito; as sociedades anônimas, e as empresas de grande porte, agora, tem como suporte prescritivo a lei 6.404.
Entender o silêncio eloqüente é entender que os textos do direito não veiculam enunciados semânticos cristalizados, congelados no tempo. O direito é um nível de realidade social. Assim, como leciona Eros Grau, o significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente.
Como diz a poetisa Helena Kolody: sem aviso, o vento vira uma página da vida.
Uma página contábil...
Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.
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