No filme A Loja Mágica de Brinquedos o contador é um personagem que só trabalha (só vê números à sua frente). Não lhe sobra tempo pra mais nada. Ele nunca pára de trabalhar. Inclusive, uma das crianças (ah! a magia das crianças) lhe propõe uma partida-brincadeira de xadrez, naquele momento ou mesmo depois do expediente, mas o profissional, convicto, afirma que não será possível, pois nunca pára de trabalhar.
Este contador sequer consegue perceber a magia da loja, sua alma de criança está escondida atrás do metódico mundo dos números (sic). Em certo momento, este é, inclusive, taxado como o culpado pelo fim da magia da loja! A culpa é do contador!
Por certo, cada ponto de vista é a vista de um ponto. Cada um lê com os olhos que tem, e interpreta a partir de onde os pés pisam.
O contador que só trabalha no metódico mundo dos números, não consegue pensar, não consegue aprender a aprender, não conhece a arte da dúvida, a arte da pergunta, a arte da consciência crítica; é um eterno repetidor de informações (é mais fácil citar ou pensar?), não alçará vôos maiores, ou como diria o teólogo Leonardo Boff, em seu metafórico livro A Águia e a Galinha, tornar-se-á uma galinha trabalhadora, onde, em oposição, a águia voa e vê ao longe – um futuro, talvez?
Penso estar evidente que, ou pensamos e nos tornamos águia, ou repetimos informações e permanecemos galinhas. A escolha é sua!
Dando um passo adiante, o direito, sabemos, é um fenômeno complexo. Uma forma, porém, de estudá-lo sem ter de enfrentar o problema de sua ontologia é isolar as manifestações normativas.
Destaco, para observações, o caput do art. 3º da Lei nº 11.638/07, “aplicam-se às sociedades de grande porte, ainda que não constituídas sob a forma de sociedades por ações, as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, sobre escrituração e elaboração de demonstrações financeiras e a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários”.
A primeira parte deste dispositivo, já estudado em outro escrito, prescreve dois comandos: 1) aplica-se o novo padrão contábil às sociedades de grande porte LTDA; 2) não se aplica o novo padrão contábil às sociedades que não enquadradas na condição de “grande porte LTDA” (anote: mandou aplicar às de grande porte, e só).
A segunda parte, agora em análise, prescreve que aplicam-se às sociedades de grande porte a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários.
Temos aqui um enunciado com organização (regras) interna de proposições condicionais, em que se enlaça determinada conseqüência à realização de um fato. Dentro deste arcabouço, a hipótese refere-se a um fato de possível ocorrência, enquanto o conseqüente prescreve a relação jurídica que se vai instaurar, onde e quando acontecer o fato cogitado no suposto normativo.
Em outras palavras, a hipótese normativa do art. 3º é de que aplicam-se às sociedades de grande porte a obrigatoriedade de auditoria independente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários, entretanto a relação jurídica só se instaura quando no universo fenomênico se verificar a ocorrência daquela hipótese, qual seja, uma sociedade de grande porte.
Vale anotar, a hipótese do art. 3º é obrigar a sociedade de grande porte; uma sociedade de pequeno porte não se enquadra nas proposições condicionais, portanto não se subsume ao conseqüente da norma. Por outro lado, basta que uma sociedade seja de grande porte para que se instaure a relação jurídica obrigacional.
Mas, como visto, as normas jurídicas têm regras internas!
Ocorre que, como demonstra o mestre Paulo de Barros Carvalho, na completude, as regras do direito tem feição dúplice: norma primária, a que prescreve um dever; norma secundária, a que prescreve uma providência sancionatória.
Segundo Carvalho, inexiste regras jurídicas sem as correspondentes sansões, isto é, normas sancionatórias.
Quando se fala em incidência jurídica, é necessário questionar: qual a sansão pelo seu não cumprimento?
As duas regras internas, juntas, formam a norma completa, expressam a mensagem deôntica-jurídica na sua integridade constitutiva, significando a orientação da conduta, juntamente com a providência coercitiva que o ordenamento prevê para o seu descumprimento.
Caso imaginássemos um enunciado estabelecendo ser obrigado possuir habilitação legal para a condução de veículo automotor (art. 140, CTB), sem que se estabelecesse penalidade pelo seu descumprimento (art. 161, CTB), estaríamos no campo dos preceitos morais, educacionais, etc...
Firmemos esse conceito: não há regra jurídica sem a correspondente sansão.
Muito bem. Cumprida esta etapa, vem a questão: qual a sansão às sociedades de grande porte que não cumprir a obrigatoriedade da auditoria independente por auditor registrado na Comissão de Valores Mobiliários?
Resposta: nenhuma!
Quando se verifica no art. 3º as regras do direito, temos como norma primária, a obrigatoriedade de auditoria; já a norma secundária, a que prescreveria uma providência sancionatória, é ausente, não existe.
Perfeitamente justificável que tal sansão faça parte de outros enunciados prescritivos, no contexto do sistema de que fazem parte. No caso o ordenamento jurídico pátrio.
Posto isto, de imediato vem a mente a Lei nº 6.385, de 1976, prescrevendo em seu art. 11 que a CVM poderá impor aos infratores das normas da Lei das S/A, bem como de outras normas legais cujo cumprimento lhe incumba fiscalizar, as penalidades legais (enumeradas).
Entretanto, nesse ponto, é preciso anotar, enfaticamente, que a Lei nº 6.385 só se aplica às sociedades disciplinadas e fiscalizadas pela CVM, ou seja, as sociedades anônimas, o que não é o caso das “sociedades LIMITADAS de grande porte”.
Torna-se necessário um esforço concentrado para mergulhar na restrição textual do art. 3º da Lei nº 11.638/07, para compreender que a aplicação da Lei nº 6.404/76 às sociedades de grande porte LTDA se resumem à escrituração e elaboração de demonstrações financeiras. Por esse modo, é forçoso reconhecer, que essas sociedades de grande porte não estão subordinadas à fiscalização da CVM.
Nunca é demais destacar que o Princípio da Legalidade é limite objetivo que se presta a oferecer segurança jurídica as pessoas.
Os enunciados da Lei nº 11.638/07, estabelecem como norma primária, a obrigatoriedade de auditoria; entretanto é ausente na norma secundária, a que prescreveria uma providência sancionatória. Estamos, então, diante de preceitos não impositivos, ou seja, morais, educacionais, etc...
O legislador, no caso concreto, recomenda a auditoria, não impõe a auditoria.
A prática mostra que se nós aceitarmos, pura e simplesmente aquilo que os eruditos dizem, corremos o risco de ficar redondamente enganados pela singela leitura dos textos.
Eis a sistemática desta diretriz, não há regra jurídica sem a correspondente sansão.
Por derradeiro vale advertir que mesmo as profissões ditas intelectuais alienam-se por completo do prazer de pensar, através de sua crescente assimilação do fazer.
*Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.
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