quinta-feira, 11 de junho de 2009

DIÁLOGO ENTRE O VENTO E O MAR, UM PARADIGMA CONTÁBIL

Marcelo Henrique da Silva

Pensar sobre um patrimônio contábil e um outro patrimônio jurídico, diferentes, pode parecer heresia num universo contábil dogmático. Entretanto, a concentração excessiva no aspecto dogmático – com menosprezo aos demais enfoques – influi negativamente nas possibilidades interpretativas, por impedir ao intérprete o acesso a dados fundamentais para o desenvolvimento da compreensão dos fenômenos jurídico-normativos, no que concerne a seus fundamentos e fins.

Na mitologia grega, Hermes, ao servir de mensageiro entre os deuses e os homens, agia, em verdade, como um construtor de pontes que possibilitavam, mediante a comunicação, a compreensão entre o mundo do Olimpo e aquele dos mortais.

Ao livre-pensador também cabe construir pontes. Entre estas estão as conexões que compete fazer entre as tantas possibilidades de estudo, visando alcançar a mais ampla compreensão possíveis dos fenômenos jurídico-normativos.

Na busca de sentido para um “patrimônio”, há se perceber uma divisão entre o “ser” e o “dever-ser”. No primeiro caso, refiro-me ao “ser”, estamos no universo da ciência contábil; no segundo, naquele das “prescrições legais deonticamente modalizadas”.

Como se sabe, a ciência (contábil) não se molda, ou é moldada, por padrões jurídicos impositivos, num verdadeiro “dever-ser”. A ciência está no universo do “ser”, livre das amarras do “dever-ser”.

O patrimônio contábil, aqui discutido, é aquele decorrente do “dever-ser”, das normas jurídicas impositivas. Estas, as normas jurídicas, com seus padrões normativos não dependem da ciência para sua validade, sendo apenas necessário que haja eficácia jurídica, técnica e social.

De qualquer modo, vale a advertência de que as referências sobre um patrimônio contábil, descritas nesse texto, decorrem das imposições normativas (um “dever-ser”), não representando, necessariamente, aquele da ciência contábil.

A partir deste olhar, levando-se em conta uma resistência natural aquilo que é novo e não prático, chegou a oportunidade de se discutir as diferenças entre o “patrimônio jurídico” e o “patrimônio contábil”, em especial com conexões da Lei 11.638 e do incompreendido, e desnecessário, RTT – Regime Tributário de Transição.

Iniciemos a construção de nossas pontes!

Ricardo Mariz de Oliveira, em trabalho de fôlego sobre o conceito de receita (de 2001), consignou, de forma brilhante, que “todo patrimônio é formado por um conjunto de direitos e obrigações de um determinado sujeito de direito, isto é, por elementos regulados pelo direito”.

Em outro trabalho (de 2008), sobre a Lei 11.638 e os reflexos tributários, Mariz de Oliveira reafirma que “as propriedades e quaisquer outros direitos sobre quaisquer bens, corpóreos ou incorpóreos, assim como as obrigações de uma pessoa passíveis de cobrança forçada, somente existem porque há normas jurídicas que as disciplinam, e são o que são segundo essas normas”.

Intrigante destacar, das afirmações acima, que o patrimônio de uma pessoa é um conjunto de relações jurídicas, reguladas pelo direito.

A afirmação de que o patrimônio é jurídico reflete diretamente no universo contábil: o patrimônio da pessoa não decorre dos registros contábeis, mas sim das suas relações jurídicas, reguladas pelo direito.

Nesse sentido é a opinião precisa de Marco Aurélio Grecco, para quem Receita e Faturamento, para efeito de incidência da COFINS e da contribuição ao PIS, são conceitos jurídico-substânciais e não contábeis, de tal modo que essas contribuições somente alcançam o que efetivamente for receita ou faturamento, qualquer que seja a forma de contabilização, mas não o inverso. Primeiro é preciso ter a natureza jurídica de receita ou faturamento, para que, depois, a forma de contabilizar seja irrelevante.

Nem de outra forma poderia ser porque, se assim não fosse, bastaria um lançamento à conta de receita para incidirem as duas contribuições, ou um não-lançamento a essa conta para eliminá-las.

Embora não se admita com tranqüilidade, a contabilidade não possui o condão de dar, oferecer, regular ou alterar a natureza jurídica de qualquer um dos elementos do patrimônio de uma pessoa, isto cabe ao direito. A contabilidade registra, demonstra e explica esse patrimônio, através de técnicas e procedimentos científicos, e apresenta-o a seus usuários, quem quer que seja.

O patrimônio da pessoa, regulado pelo Código Civil Brasileiro de 2002, é o complexo de “relações jurídicas”, dotado de valor econômico. Ou seja, o patrimônio é jurídico, não contábil.

Nesse ponto, assevera Mariz de Oliveira, “é bom não se perder de vista que, se não houvesse o Estado de Direito e suas leis, ninguém poderia ter o domínio sobre as coisas do mundo, e ninguém poderia ser compelido a cumprir suas obrigações, prevalecendo um ambiente de força física para apropriação de coisas, e não haveria patrimônio a ser contabilizado. Ao contrário, no Estado de Direito, a contabilidade registra os patrimônios segundo os direitos e as obrigações das pessoas, conforme as leis lhes outorgarem”.

O patrimônio jurídico e o patrimônio contábil, com raríssimas exceções e a contragosto de algumas normas administrativas, caminharam juntos (para muitos ainda continuam). No sentido da separação destes patrimônios vale destacar a Deliberação CVM nº 29/86, que na busca de uma essência contábil, não muito explicada até hoje, expunha que “a contabilidade possui um grande relacionamento com os aspectos jurídicos que cercam o patrimônio, mas, não raro, a forma jurídica pode deixar de retratar a essência econômica. Nessas situações, deve a Contabilidade guiar-se pelos seus objetivos de bem informar, seguindo, se for necessário para tanto, a essência ao invés da forma”.

No objetivo da CVM (deve existir algo assim no CFC – depois alguém me avise!), com aplicação de uma suposta essência econômica sobre a forma jurídica, o patrimônio contábil seria diferente do patrimônio jurídico.

Entretanto, em que pese uma boa intenção contábil, esta resolução é ato inferior a lei, não podendo contrariá-la, restringi-la ou ampliá-la, e como as leis não previam essa “essência econômico-contábil”, a resolução não possuía qualquer força impositiva.

Recorde-se que o patrimônio da pessoa é o complexo de “relações jurídicas”, tendo como essência o direito, conforme as normas jurídicas. Não podemos nos perder deste fundamento.

Com o padrão contábil, prescrito pela Lei 11.638, as poucas empresas obrigadas à adoção, bem como seus usuários, verão surgir, com nitidez impar, um patrimônio contábil distorcido daquele patrimônio jurídico. Agora sim com fundamento legal, a Lei 11.638.

Evidentemente que o patrimônio da pessoa, para fins de direito, continuará sendo aquele regulado pelo direito – patrimônio jurídico; o patrimônio contábil, para fins contábeis e de alguns de seus usuários, poderá ser distorcido daquele jurídico pelo próprio direito (Lei 11.638), em decorrência de um “dever-ser”.

Como avisado anteriormente, não vem aqui ao caso discutir normas jurídicas e ciência contábil, a primeira decorrente de um “dever-ser”, a segunda do “ser”. Temos que a Lei 11.638 é norma jurídica deonticamente modalizada. Permitindo, proibindo ou obrigando alguns, dentro dos limites e extensão da “interpretação do direito”, a adoção de um padrão contábil específico (nem novo, nem velho, específico!).

A Lei 11.638 regulou o “registro” contábil, mas não alterou em nada o direito patrimonial, ou, de outra forma, as normas jurídicas que compõe o complexo de leis que regulam as “relações jurídicas” do patrimônio.

Para que se compreenda a “novidade” apresentada, é necessário anotar que as relações patrimoniais continuam sendo reguladas por normas jurídicas do direito privado, ou público em alguns casos. Os bens, direitos e obrigações continuam submetidas às normas jurídicas que as regulam, independentemente da forma contábil adotada.

Nesse sentido é o esclarecimento de Mariz de Oliveira, onde “o negócio de compra e venda continua sujeito ao que sobre ele diz o Código Civil a partir do art. 481, e sua causa (a função prática) continua a ser aquela que tal regramento jurídico atribui, nada sendo afetado pela maneira como cada uma das partes do negócio o escriturar graficamente em seus livros contábeis”.

O arrendamento mercantil, por exemplo, atualmente decantado em verso e prosa como o exemplo maior da essência sobre a forma (ainda que não se saiba ao certo qual é essa “essência” e qual sua extensão), continua sendo um arrendamento mercantil regulado pelo direito; na essência (jurídica) continua sendo arrendamento mercantil.

A forma de contabilização deste contrato jurídico de arrendamento não altera a sua natureza, que é jurídica e permanecerá jurídica; continuará sendo arrendamento mercantil, com ou sem a anuência da contabilidade.

O bem arrendado continuará sendo patrimônio jurídico do arrendador, independentemente da forma como este e o arrendatário operarem em suas contabilidades. A contabilidade não altera a natureza jurídica do bem, aquela da relação contratual. O bem do arrendamento continua sendo patrimônio daquele que o direito assim o regulou, no caso o arrendador, até que o direito opere a transferência para o, até então, arrendatário.

Se há alguma essência econômica sobre a forma jurídica, esta é apenas no plano contábil. Para o direito, o arrendamento mercantil é arrendamento mercantil, exceção feita na ocorrência de simulação ou dissimulação.

Alguns usuários da contabilidade, daquelas empresas obrigadas a adotar o padrão contábil da Lei 11.638, poderão ver nas demonstrações contábeis não mais o patrimônio jurídico, mas um patrimônio contábil, onde a “essência” econômico-contábil prevalecerá sobre aquela da relação jurídica. Tudo sobre a tutela da Lei 11.638.

Essa diferença patrimonial, entre o jurídico e o contábil, mal entendida, produziu uma norma desnecessária, no caso o RTT – Regime Tributário de Transição.

Muito se escreveu, muito se questionou, muito se polemizou sobre esse RTT; mas esse regime é desnecessário, desde que se compreenda a essência (olha a essência aí de novo!) da diferença entre o patrimônio jurídico e o patrimônio contábil.

Como visto alhures, a Lei 11.638 alterou o padrão contábil para algumas empresas, não para todas, diga-se de passagem (pra tanto leiam os textos disponíveis na internet dos professores Antonio Lopes de Sá e Wilson Zappa Hoog). Ocorre que estas alterações são exclusivas no universo contábil, não houve alterações de normas jurídicas do direito privado ou público, nem mesmo do direito tributário.

Vale anotar que o direito é uno e único, alimenta-se da mesma fonte. O direito é árvore que apenas se ramifica como forma de facilitar o ensino didático, bem como para melhorar sua funcionalidade. Mas é único.

A Lei 11.638 não produz qualquer impacto no direito tributário (ramo didático do direito). A forma de contabilização não transforma a natureza jurídica de uma receita para despesa apenas pela escrituração, ou vice versa. Uma venda a prazo, com juros embutido, continua sendo tributada como venda a prazo, pelo todo, mesmo que a contabilidade (da essência econômica!?) separe uma parcela para venda de produtos e outra pra juros. Para o direito a essência continua sendo venda a prazo, e para o direito tributário continua sendo venda a prazo, independentemente do “modus operandi” contábil. Independentemente do padrão contábil. Independentemente da existência ou não de um contabilidade.

Com ou sem RTT, o patrimônio tributável é aquele jurídico. Não houve alteração legal desta disposição. O RTT é redundante, pois não há qualquer permissão para tributar algo com base em lançamento contábil.

O direito tributário, pra que se tenha noção, autoriza a dedução como despesa dedutível dos valores pagos a título de arrendamento mercantil, com exceção da parcela residual, independentemente da forma adotada pela contabilidade. Isso porque o direito tributário não mudou, as normas jurídicas continuam regulando a matéria, e autorizando o gasto dedutível. E lembre-se, independentemente da forma contábil.

A contabilidade, qualquer que seja o padrão, não regula a natureza jurídica do patrimônio, isso é exclusivo do direito, que também é quem dispõe sobre tributação. O registro contábil não é fonte material para a tributação.

Nunca houve, portanto, permissão legal para tributação com base em lançamentos contábeis, com ou sem padrão contábil, com ou sem RTT.

A tributação brasileira decorre das relações oriundas do patrimônio jurídico, nada mais.

A função do RTT, se é que há alguma, seria apenas esclarecer o óbvio: a neutralidade tributária frente aos registros contábeis.

É, por fim, o respeito ao direito positivo, nada mais!

Fazer conexões é papel essencial da hermenêutica jurídica. Esta não se reduz à interpretação de textos legais para a solução de casos concretos. Tem escopo mais amplo: construir a compreensão mais ampla possível de todo o fenômeno jurídico.

Por derradeiro, antes que seja lançado na fogueira, vale anotar um importante pensamento do filósofo e político inglês Francis Bacon: Leia não pra contradizer nem para acreditar, mas para ponderar e considerar.

Considere. Está aberto o diálogo!

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Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.

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