sexta-feira, 12 de junho de 2009

TESTEMUNHAS DE MIM MESMO, UM CONTADOR

Marcelo Henrique da Silva

Aprendi que estou errado, o que já um bom começo. Aprendi que o padrão contábil da Lei 11.638 é aplicável a todas as empresas brasileiras, grandes, pequenas, médias, micros, mínimas, nanicas, nanonanicas, todas, indistintamente. Aprendi num curso chapa-branca, mas não deixa de ser um curso. Tenho o certificado, posso provar que aprendi. Aprendi que esse padrão contábil é aplicado do Oiapoque ao Chuí. Da Petrobras ao postinho de gasolina ali na vila esperança; da Vale (do Rio Doce) a Pedreira do seu Zé; da Casas Bahia a Lojinha do Nagib, no Camelódromo. Aprendi que não adianta pensar diferente, pois assim estar-se-á errado, não pode. Aqueles que pensam ao contrário são irresponsáveis, não sabem o que falam, seus fundamentos são subfundamentos, de segundo nível, descartáveis, servem para risos e não merecem qualquer respeito. Uma contracultura. Aprendi, ainda bem! Esses subfundamentos não se sustentam aos saberes jusfilosóficos dos Diplomatas dos Saberes, este sim os senhores das explicações. Esses, os Diplomatas, representam, apresentam e explicam o pensamento correto, o único possível. Aprendi, ainda bem! Na verdade não entendi o motivo de estar obrigado a levar calculadora no curso, nem usei. Mas constava do programa "trazer calculadora simples". Sempre ouvi dizer que contabilidade não era ciência exata, mas ... peraí ... se mandaram levar tenho que levar, não posso questionar, pensar diferente. Poderia ser multado? Bem, se os patrocinadores dos Diplomatas mandaram, eu obedeço! Realmente, posso ser multado pelo fiscal-delegado se estiver sem calculadora. Seja como for, levei calculadora, mas não usei, ainda bem, pois pra mim matemática faz parte das ciências ocultas. Acho que ela, a calculadora, era um passaporte pra entrar da sala, pra fazer parte do grupo daqueles que sabem o que fazer, Doutores da Lei. Mas não entendo a calculadora num curso pra explicar leis. Entrei, e aprendi muita coisa, ainda bem! Acabou o curso. Sai aliviado e importante, aprendi que o norte da Lei 11.638 é a essência sobre a forma, e que não posso contabilizar leasing como contabilizava antes. Aprendi que tenho que imobilizar. Achei legal. Ouvi dizer que faz tempo que era pra fazer assim, que há uma resolução dizendo pra fazer assim. Agora, ouvi no curso, com a lei, sou obrigado a contabilizar o bem do leasing como ativo no patrimônio do arrendatário. Aprendi, ainda bem! Aprendi que prevalece a essência econômica sobre a forma jurídica. Nessa hora levantei o braço pra perguntar, os Diplomatas fizeram que não viram, ou viram que não fizeram, sei lá, acho que eles me acharam um ignorante, desprovido da possibilidade do saber, não apto a subir no altar deles, dos sábios, dos eruditos. Realmente, sou cheio de dúvidas, eles cheio de certezas. Aprendi isso, ainda bem! Mas não precisa perguntar mesmo, quem pergunta muito deve ter problemas na cabeça, já ouvi alguém dizendo isso. Fiquei quieto. Melhor pra mim. O negócio é não perder a linha de pensamento dos Diplomatas, preciso fazer contabilidade daquele jeito. Quando crescer quero ser Diplomata (eu acho), eles pensam os pensamentos certos, irrefutáveis! Seja como for sai do curso tinindo da silva, em ponto de bala. Na cabeça a novidade da essência sobre a forma, que é a essência do negócio; e a questão do registro contábil do leasing. Marquei uma reunião com um cliente pro dia seguinte, logo pela manhã. Esse cliente, um escritório de advocacia, acabara de contratar um leasing de um veículo. Havia visto nos documentos contábeis daquele mês. No mesmo mês do curso, que sorte minha! Na reunião disse ao cliente que a partir de agora iria contabilizar o leasing como um bem no patrimônio do escritório de advocacia. Meu cliente saltou da cadeira. Indignado refutou minha informação. Aleguei tratar-se de um registro pela essência, não pela forma, conforme me foi ensinado a fazer pelos Diplomatas. Outro salto. Afirmou que na essência o contrato de leasing é um contrato de leasing. Não haveria, segundo meu cliente, outra essência, senão aquela jurídica, caso contrário o próprio contrato do leasing seria considerado uma simulação. Expliquei que no curso os Diplomatas dos Saberes, especialistas em contabilidade, pós-especialista em direito, pós-pós-especialista em educação, pós-pós-pós-especialista em explicação, afirmaram que é assim que tenho que fazer, senão serei multado pelo fiscal-delegado. Achei que agora o cliente iria cair da cadeira, mas conseguiu se segurar, e afirmou que o direito regulamenta o contrato do leasing, a contabilidade apenas registra o patrimônio. O bem do leasing não faz parte do meu patrimônio, e isso é que o direito regula, disse ele. Lembrei que no curso houve um destaque pra esse tema, disseram, todos os três Diplomatas, pra gente explicar pros clientes que a contabilidade apenas registrará o bem como patrimônio do arrendatário, mas juridicamente o bem continua sendo do arrendador. Voltei a explicar que esse procedimento é obrigatório, está na lei, e é aplicável a todas as empresas brasileiras, grandes ou pequenas. Todas! Mesmo a contragosto meu cliente concordou com a contabilização do bem arrendado como bem do seu patrimônio. Ainda bem, ele aprendeu! Na saída, quando estava na porta, meu cliente pediu pra que comentasse um pouco mais sobre essa contabilidade de essência sobre a forma. Como se definira essa essência sobre os negócios? Adorei. Expliquei que com o padrão contábil internacional a contabilidade vai buscar a essência do negócio, não a forma jurídica como ele é realizado. No caso do leasing, a essência seria uma compra a prazo... Meu cliente caiu da cadeira. Ajudei-o. Pedi calma, e anotei que essa essência é apenas contábil. Me despedi, e já na porta, novamente meu cliente voltou a me interpelar: - nessa essência sobre a forma, disse ele, se um bem adquirido em nome da empresa não for necessariamente da empresa como ficaria a contabilidade? Pensei um pouco. Bem, como na essência esse bem não faz parte do patrimônio da empresa, apenas o contrato formal foi realizado em nome desta, não pode ser contabilizado como tal. Outra queda da cadeira. Meu cliente, ainda se levantando, faz uma confissão: - o veículo do leasing, objeto de sua visita, foi arrendado em nome da empresa, mas na verdade ele é de uso pessoal da minha esposa, é bem particular meu; o leasing em nome da empresa foi uma sugestão do vendedor, pois entrou como leasing pra frotista, com preço menor e taxa de juros melhor. Agora eu quase caí das pernas. No curso ninguém falou desse caso, mas na essência esse bem não é contabilizável, não é patrimônio da empresa. Me despeço sem responder meu cliente, preciso consultar os gurus Diplomatas, os Senhores dos Saberes, eles devem ter as respostas, todas, claro. Vou mandar um e-mail depois. Mas agora vou noutro cliente, empresa construtora, faz construção de residências. Expliquei a questão da essência sobre a forma, e os sócios-engenheiros gostaram bastante, pois no campo das ciências exatas as coisas são assim mesmo explicáveis (nas ciências humanas não se explica, se compreende). Tudo bem que eles não entenderam a essência da coisa, eu achava, mas fiz meu papel de consultor da contabilidade (no curso aprendi isso, deixamos de ser contadores pra ser consultores da contabilidade). Discutimos alguns outros assuntos, e na saída fui questionado: - nesse negócio de essência sobre a forma como fica as nossas construções quando registramos tudo em nome do contratante (registro CEI, empregados, compra de materiais, impostos, etc); lembre-se que fazemos isso com freqüência, pois obtemos economia tributária; na forma ficamos como administradores da obra, mas na essência construímos? Fiquei mudo. Na essência meu cliente faz construções, mas em muitos casos faz contrato formal de administração da obra, mas isso é só contrato, é forma, na essência é construção pura e simples. Pedi licença, preciso ligar urgente praqueles gurus. Os caras não explicaram isso! Saí, afirmando que depois teria uma resposta. Fui pra outro cliente, espero que o último nesse dia. Saí inspirado de casa, pra abafar com as informações do curso, mas até agora só deu dor de cabeça, só deu questionamentos. Agora nesse cliente deve ser mais fácil, a empresa dele é do Simples Nacional. Fichinha! Expliquei a essência sobre a forma (novamente). Meu cliente, administrador de empresas, ficou preocupado ao final da minha exposição, mas não entendi qual seria o motivo. Ele esclareceu: - meu caro, estou com duas empresas no mesmo endereço, só que em uma no número acresci a letra A; essa segunda foi aberta pra não estourar o limite do Simples da primeira, lembra? Inclusive foi você quem sugeriu a abertura dessa segunda empresa, que está em nome dos meus pais; você disse que um monte de gente faz isso, dessa mesma forma; se essa essência for verdadeira eu não tenho mais duas empresas, dois patrimônios a serem contabilizados, mas apenas um, pois apenas na forma jurídica são duas empresas, na essência uma só; e agora como fica minha contabilidade, o fisco vai me descobrir, e o gerente do banco ao pedir a contabilidade, qual informação lhe repasso? Não tive respostas. Vou perguntar pra alguém, depois lhe respondo. Saí, mais uma vez sem respostas. Resolvi visitar mais um cliente, afinal, vai que nesse consigo arrasar. Chegando no cliente, tirei da pasta um balancete de verificação do último mês, onde constava um caixa negativo (ninguém seja hipócrita, hein!). Expliquei pro cliente a essência sobre a forma, e ele ficou bem impressionado, afirmando que até que enfim o contador deixaria de ser um contador preenchedor de guias, poderia ser valorizado a partir de agora. Ufa, até que enfim acertei! Acho que até posso reajustar meus honorários. Num segundo momento, depois do êxtase inicial, apresentei o caixa negativo, e meu cliente disse que isso ocorre pelas vendas sem nota fiscal, coisa mais que normal nas pequenas empresas brasileiras. Quando meu cliente terminou da falar a essência sobre a forma veio a minha cabeça. Se na essência esse caixa negativo decorre de vendas sem nota fiscal, a contabilidade deve contabilizar essas vendas, pois essa é a essência; acho que não posso mais fazer aquele contratinho de empréstimo de dinheiro do sócio pra empresa, como sempre fiz, ou ainda, tirar um pouco de despesas pro caixa ficar azul. Pensei que das duas uma, ou deixo o caixa negativo, com base nos documentos contábeis apresentados pelo cliente (a contabilidade registra o patrimônio), ou mantenho esse valor negativo e pela essência registro receitas sem nota fiscal (uma conta contábil nova)! Realmente, hoje não foi meu dia. Vou pra casa. Peço desculpas ao cliente, digo que vou transmitir essas questões pros Senhores dos Saberes, eles podem me ajudar. Pensando, em casa, conclui que os problemas verificados no meu dia foram atípicos, isso não acontece com os demais colegas que trabalham com outras empresas pequenas, médias, micros, mínimas, nanicas, nanonanicas. Liguei pra um amigo contador, que também participou do curso, e expliquei meus questionamentos. Do outro lado o telefone ficou mudo. Meu amigo questionou: quer dizer que essa essência é isso mesmo, não é só pro negócio do leasing? Aqui no escritório abri uma empresa de processamento de dados, e dividi meu negócio contábil, agora sou dois, uma parte de mim faz contabilidade outra parte faz processamento de dados. Você sabe né, todo mundo faz assim pra economizar e eu não podia ter ficado pra traz. Se for assim a minha contabilidade também está errada, pois meu patrimônio é um só. Essa empresa de processamento de dados é apenas uma forma, na verdade verdadeira continuo sendo um só. Agradeci meu amigo. Desliguei o telefone. Não ajudou em nada. Liguei pra minha consultoria, empresa nacional, reconhecida, uma das maiores. Enquanto espera o atendente pensei na atividade da consultoria, e lembrei que a nota fiscal que eles me mandam é de venda de periódicos, não há nota de serviços! Mas qual a atividade desta consultoria? Qual a essência, a venda de periódicos ou o serviço de consultoria? Como defino qual a essência? Na nota fiscal, lembro, vem descrito que tenho direito a receber o material impresso por doze meses e receber consultoria pelo mesmo período. A essência seria venda de mercadorias ou venda de serviços? Desliguei o telefone, antes de ser atendido. Preciso contatar aqueles Diplomatas, só eles podem me salvar. Que nada, isso é besteira minha, o padrão contábil internacional é aplicável a todas as empresas, e é isso que tenho que fazer, o resto é resto, pensar diferente é pensar algo morto desde o início. Os pensamentos dos Diplomatas são pensamentos de Anjos, os outros pensamentos de Demônios. Entre Anjos e Demônios prefiro ser do bem, ser Anjo, claro. Realmente, o padrão contábil da Lei 11.638 é aplicável a todos! Estou convencido, mesmo não entendo de leis, prestei atenção no curso, e se aqueles que são os sabedores das leis disseram assim e assado, quem sou eu pra desdizer, pra contestar, vão dizer que eu não tenho certificados suficientes pra ter opinião contrária àquelas dos Diplomatas dos Saberes, aqueles que dedicam suas vidas a explicar o universo jurídico contábil, que abriram mão de amores e paixões pra decorar o Manual de Contabilidade, pra decifrar o direito natural do Conselho. Vou dormir, quem sabe amanhã o dia pode ser melhor. Mas, não posso esquecer que o padrão contábil da Lei 11.638 á aplicável a todos, não apenas as S/A e de Grande Porte. Não posso pensar diferente (será que há multa em alguma resolução por pensamentos diferentes, aqueles que a gente pensa quando não está pensando?).
Ainda bem que aprendi tudo isso! Ainda bem que sou amigo dos Reis. Ainda bem que não sou Doutor, sou estudante, eterno aprendiz. Ainda bem que conheci os cordéis do Patativa do Assaré, para quem “dêste jeito Deus me quis e assim eu me sinto bem; me considero feliz sem inveja quem tem profundo conhecimento”.

Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.

Nota
Não há quebras de parágrafo no texto. O autor utilizou uma escrita no estilo do José Saramgo, prêmio Nobel de Literatura.

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