segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

CASTELO DE CARTAS, ÊXTASE CONTÁBIL

Marcelo Henrique da Silva
Fevereiro/2010

Dizem que o padrão contábil internacional é composto por partes, sem um todo. Essas partes, inclusive, não resultam num todo, se somadas; limitando-se a fragmentos.

Para os sábios contábeis, eruditos – chapa-branca – de última hora, a interpretação destas ocorre, então, em tiras, aos pedaços.

Daí, talvez, uma atual interpretação obrigacional de adoção deste padrão a todas as sociedades, grandes ou pequenas. Conhecimento unidimensional...

Importa considerar que um texto isolado, destacado, desprendido do sistema, não expressa significado normativo algum; ou nas palavras do sempre pontual ministro Eros Graus, do STF: a interpretação do direito é interpretação do direito, no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito.

Essa, inclusive, é a lição para o “círculo hermenêutico”, descrito pelo filósofo Gadamer, para quem: “o movimento da compreensão vai constantemente do todo à parte e desta ao todo. A tarefa é ampliar a unidade do sentido compreendido em círculos concêntricos”.

Isso permite anotar fragmentos contábeis, onde, por exemplo, a Resolução CFC 1.159 descreve uma obrigação (lida literalmente) de adoção contábil a “todas” as sociedades, e, de outro lado, a Resolução CFC 1.255 descreve uma adoção “para as sociedades não consideradas de grande porte ou S/A de capital aberto”. Note-se bem, o “todas” da resolução inicial não era bem assim um “todas”, pois se assim o fosse lá estariam as sociedades de pequeno porte, todas.

Quanto à destinação dos lucros, também temos um “todo” relativo. Com a redação pela Lei 11.638 ao art. 178 da Lei 6.404 não há mais previsão da conta lucros acumulados. Para “todas” as empresas, pela lei 6.404 (e regidas por ela), não há como existir uma conta de lucros acumulados. Porém, segundo o Conselho Contábil, essa conta deixa de existir apenas para as S/A, e não para as demais sociedades e entidades de forma em geral. Ou seja, “todas” devem eliminar a conta lucros acumulados, “exceto” as não qualificadas como de grande porte e as S/A de capital aberto.

Nada há de novo nisto, mas como diz o poeta Manoel de Barros: “repetir é um dom do estilo”.

Razoável crer que este conhecimento unidimensional dos eruditos, sábios, interpretando textos em tiras, aos pedaços, fosse superado diante de uma fusão de horizontes da compreensão, mas... mas... mas... Quem está convicto da verdade não precisa escutar opiniões contrárias. Por que escutar? Somente prestam atenção nas opiniões dos outros, diferentes da própria, aqueles que não estão convictos de ser possuidores da verdade. Quem não está convicto está pronto a escutar – é um eterno aprendiz. Quem está convicto não tem o que aprender – é um permanente sábio, convictos.

As inquisições se fazem com pessoas convictas. O inquisitor não está interessado em ouvir as razões daquele que está sendo inquirido. Interessa-lhe uma coisa apenas: as idéias dessa pessoa são iguais ou diferentes das minhas? Se forem iguais, está absolvido. Se forem diferentes, cai para a fogueira.

Para proteger essa verdade, dizem os sábios: as normas contábeis não são para ser pensadas, discutas, são para ser memorizadas, repetidas e cridas. Vale notar que o mais seguro aos sábios é que os contadores não tenham pensamentos próprios, não aprovados pela “casa dos sábios”. Para evitar esse perigo, “esses pedagogos” se dedicam a caçar heregeres, pessoas que tem pensamentos diferentes. Porque tais pessoas ameaçam as “colunas” da casa...

A esta altura é importante notar um “demônio” contido no Memorando de entendimento sobre contabilidade mundial, assinado recentemente pelos CPC, CFC e IASB.

Refere o memorando que: “[...] uma lei federal que reformou parte da Lei das S.A. foi sancionada em dezembro de 2007, requerendo que todas as companhias abertas, bem como as sociedades de grande porte (ali definidas), qualquer que seja sua forma jurídica de organização, também acatem as disposições contábeis dessa nova lei em suas demonstrações contábeis individuais, a partir de 1º de janeiro de 2008”.

Ora, CPC e CFC, de forma correta, reconhecem que as leis 11.638 e 11.941 são aplicáveis juridicamente apenas às companhias abertas e as sociedades de grande porte (definidas como tal pelo art. 3º da lei 11.638).

Quem deseja compreender algo deve colocar-se em posição adequada para tal compreensão.

Fazer isso significa preocupar-se com as perspectivas pelas quais o objeto a ser compreendido deve ser considerado. É a escolha adequada destas que pode possibilitar o ampliar do horizonte e o conseqüente alargamento do campo de visão no qual o objeto de estudo é percebido. Em outras palavras: é preciso livrar-se dos grilhões da “corrente”.

Por certo prossegue o memorando que “o CPC e o CFC também envidarão seus melhores esforços no processo de endosso e ampla disseminação, incluindo apoio a treinamentos, com objetivo de facilitar a adoção das normas IFRS para PMEs no Brasil”.

A respeito desta parte do memorando faz-se necessário uma liberdade de expressão, extraindo das palavras a “verdez primal”.

Vale dizer, se este padrão contábil fosse (repito: “fosse”) aplicável a “todas” em decorrência de uma lei, a que se prestaria este “esforço” no processo de endosso e ampla disseminação das IRFS para as sociedades não consideradas de grande porte e S/A de capital aberto? Se a lei, num dever ser, obrigasse o cumprimento a “todas” as sociedades o esforço não seria desnecessário? Cumpra-se a lei, e pronto!

Do que consta deste memorando é possível concluir que o “esforço” para adoção pelas PMEs é apenas uma metáfora casuística, ou seja, um pedido, por gentileza, para que “todas” adotem o padrão contábil, mesmo que não imposta por lei.

Sucede que a primeira parte do memorando deixa muito bem vincado, e claro, a extensão cogente do padrão contábil internacional, qual seja: aplicável “apenas” para as companhias abertas (S/A) e as demais sociedades de grande porte. Daí pra diante é emocional...

Neste último sentido, as normas-objeto do padrão contábil cumprem seu papel, seja como indicativas dos fins de política contábil a serem implementadas às S/A de capital aberto e sociedades de grande porte, seja para a interpretação prudencial do direito.

Como afirma o jurista Norberto Bobbio, as normas só tem existência em um contexto de normas, isto é, no sistema normativo.

Tal compreensão, por certo, somente será possível mediante homens livres, capazes de superar os grilhões da “corrente”.

Aos heregeres: sejam bem vindos!!!


Marcelo Henrique da Silva, é contador em Londrina.

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